quarta-feira, 26 de maio de 2010

 

A jornada do Herói



O que é o herói? Joseph Campbell, autor referência quando se fala em herói e mito, diz que herói é “o homem ou a mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas”, alguém que superou as limitações e ascendeu “como homem eterno – aperfeiçoado, não específico e universal”. O herói ou heroína está presente em todo conto, romance, fábula ou filme, mesmo que o próprio não se identifique como tal.
Muita gente assistiu Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton, e não gostou, achou a história fraca ou infantil. No entanto, Alice segue todos os passos do herói citados pelo autor.
Este texto pode conter spoilers do filme.

1. O Chamado da Aventura: Alice, desde criança, sonha com um mundo maravilhoso, chamado por ela de “Wonderland”, mas sem acreditar que seja real. Quando Alice está entrando na vida adulta, os seres deste mundo precisam da ajuda dela. O Coelho Branco é o responsável por chamar sua atenção – e ela o segue.

2. A Recusa do Chamado: Logo que chega ao país maravilhoso, depois de cair na toca do coelho, Alice tenta explicar aos outros personagens que não é “aquela Alice”. Não é a heroína que eles precisam e, apesar dos feitos heróicos, nega isso até o clímax do filme.

3. O Auxílio Sobrenatural: Uma vez no mundo fantástico, tudo é sobrenatural. Oras, os sucos encolhem e os bolinhos fazem crescer. As flores e animais falam, a lagarta é o velho sábio. Os personagens todos funcionam como ajudantes para Alice, para que ela se descubra, e como motivação para que ela encontre a heroína em si, já que precisa salvá-los constantemente.

4. A Passagem Pelo Limiar: O limiar é o que separa o mundo em que vivemos do mundo inferior – nome conveniente, já que a Rainha Branca explica que o verdadeiro nome daquele país é Underland (Terra Inferior, Terra de Baixo), não Wonderland. A toca do coelho divide esses dois mundos. Uma vez no ambiente novo, Alice precisa esquecer as regras normais e aprender as novas. Aqui, é possível mudar de tamanho, conversar com seres supostamente inanimados e viajar no chapéu.

5. O Ventre da Baleia: Este é o momento crucial para qualquer narrativa. É quando o herói conhece o perigo – e se joga nele. No filme, vemos isso quando Alice invade o castelo da Rainha Vermelha para salvar o Chapeleiro Maluco. O ventre da baleia é considerado local de morte e renascimento. Na tentativa de salvar o amigo, Alice começa a se tornar mais confiante. A mocinha casadoira começa a dar lugar à heroína que a história precisa ter.

6. O Caminho de Provas: Para mim, não há um lugar específico em narrativa alguma para este momento, até porque ele pode ser o próprio cerne da história. São as dificuldades pelas quais o protagonista passa, para provar o seu valor. É atravessar uma ponte de cabeças, enganar a Rainha Vermelha, conquistar o apreço de uma fera e ir montada nela em busca de aliados.

7. O Encontro com a Deusa: O que é a Rainha Branca, senão a deusa provedora, a mãe, a proteção? A rainha destronada oferece à Alice um teto, o retorno ao seu tamanho normal e a possibilidade de voltar ao seu mundo, após a derrota do último inimigo. Mas, para isso, pede que Alice seja seu guerreiro.

8. A Sintonia com o Pai: Pulei o passo da “mulher como tentação”, primeiro porque é um que eu não concordo e segundo porque é o único que não se aplica ao filme. Campbell fala que, para encontrar a sintonia com o pai (normalmente um deus ou ente sobrenatural), o herói precisa mostrar seu valor e, assim, não ser destruído. Para Alice, a sintonia está em acreditar no impossível. Quando ela faz como seu pai e pensa em seis coisas impossíveis antes do café da manhã, ela encontra a força necessária para derrotar seu último inimigo e encontra a si mesma, nas semelhanças com o pai. Não é apenas o dragão que ela vence, mas as convenções sociais e o próprio receio.

9. A Apoteose: Quando Alice vence o Dragão, ela também se liberta de diversas amarras da vida dela, como dito no ponto anterior. Campbell vê a apoteose como momento de iluminação.

10. A Bênção Última e A Recusa do Retorno: A Rainha Branca voltou ao seu lugar de direito, castigou seus inimigos e ofereceu à Alice o retorno tranqüilo para seu mundo. O Chapeleiro pede que ela fique, mas Alice sabe que precisa voltar, por mais que queira ficar ali. Apesar da recusa do retorno ser comum, neste caso ela não acontece.

11. A Fuga Mágica e O Resgate com Auxílio Externo: A morte do dragão é justamente o que permite a Alice voltar ao seu mundo, pois o sangue do animal morto é sua passagem de volta, dado de presente à heroína pela Rainha. Alice não precisa de um auxílio externo para enfrentar o mundo, mas precisa para poder ganhar sua liberdade. Falarei sobre isso no último tópico.

12. A Passagem pelo Limiar do Retorno: É com grande espanto de todos os presentes que Alice retorna ao gazebo-palco com a roupa suja de terra. A moça que fugiu dali não é a mesma que retorna. Depois das aventuras vividas no maravilhoso mundo inferior (ou interior), ela se sente confiante para recusar o pedido de casamento e dizer às pessoas ao redor não apenas o que pensa delas, mas o que elas precisam ouvir.

13. Senhor de Dois Mundos: Diferente de quando era criança, Alice não se esqueceu de suas aventuras em Underland. Ela é uma guerreira, uma heroína, a responsável por levar ordem aquele mundo e sabe que ali possui amigos que a entendem.

14. Liberdade para Viver: O último passo do caminho do herói não poderia ser mais emblemático. Ela se torna senhora de sua própria vida com ajuda do ex-futuro-sogro, que, já que não a terá na família, a contrata para sua empresa, aonde ela assume o lugar do pai e passa a liderar o navio Wonder. O ex-sócio de seu pai lhe dá as condições necessárias para viver no mundo dos negócios, independente de ser uma mulher.

Por que este texto enorme sobre a aventura do herói?

Porque, quando criamos uma narrativa, seja ela em que veículo for (livros, quadrinhos, cinema, teatro, as opções são amplas), nosso protagonista é um herói. Pode ser um herói épico como Leônidas. Pode ser de conto de fadas, como Alice. Pode ser um herói moderno, com atribulações comuns a todos, na busca da mulher certa, como Ted Mosby, do seriado How I Met Your Mother. Nem todos os passos do herói são imprescindíveis, mas sempre vamos utilizar alguns deles, então o melhor a fazer é conhecê-los antes de aplicá-los.

Dica de Livro: O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell. Editora Pensamento. 414 páginas.